segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Hermenêutica Jurídica - Lição 19 - Hermenêutica Constitucional: Hans Kelsen

Escola da interpretação jurídica contemporânea

a. Contribuição de Hans Kelsen

      No capítulo 8 da Teoria pura do Direito Hans Kelsen aborda a questão da interpretação.

     O autor traça a concepção de que a interpretação e aplicação do direito são dois momentos de um mesmo processo. E
le diz que para que um órgão jurídico possa aplicar o direito um dos pressupostos é que o sujeito tem, necessariamente, que fixar o sentido das normas, portanto necessariamente tem uma prévia da interpretação. A única diferença da interpretação é um dos momentos do processo de aplicação.

     Segundo ele:
"Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior". (1999, p. 245)
      A única real diferença que interessa ao Direito seria quem interpreta, aí ele fará a distinção da interpretação autêntica e a inautêntica.  Autêntica é feita pelos órgãos jurídicos que aplicam o direito enquanto a interpretação inautêntica é feita pela ciência jurídica.

      Quando ele vai limitar a teoria da interpretação dele diz que está fazendo a teoria para aqueles que aplicam o Direito. Assim ele vai escrever sobre a teoria da lei moldura.

1. Teoria da lei moldura.

      Segundo Kelsen o ordenamento jurídico funciona como se fosse uma moldura normativa. Como em um quadro que em volta tem uma moldura normativa e dentro tem a discricionariedade judicial. O magistrado tem toda discricionariedade desde que não extrapole a moldura.
"Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever" (KELSEN, 1999, pág. 246).
       Ele coloca a questão de que existe uma impossibilidade jurídica de se vincular a discricionariedade do magistrado. A moldura normativa deixará sempre uma margem, ora maior, ora menor de livre apreciação. Existe a impossibilidade de vinculação de todos os atos do órgão aplicador.

      Por mais pormenorizada que seja a lei ela deve deixar uma margem de liberdade. Consequentemente o Direito sempre terá dois tipos de conteúdos o determinado e o indeterminado.

      O conteúdo determinado é o ordenamento jurídico positivo e um conjunto de normas. E o conteúdo indeterminado é essa margem de liberdade que o intérprete tem para adequar a norma ao caso concreto.
"A lei penal prevê, para a hipótese de um determinado delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou pela outra e determinar a medida das mesmas - podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um limite mínimo" (KELSEN, 1999, pág. 246).
       Conteúdo indeterminado é característica do fato. O ordenamento jurídico não tem como exaurir todos os fatos sociais porque a norma é uma criação hipotética. Não tem como a norma pormenorizar todos os fatos. Aqui ele está retirando a teoria da escola da exegese.

      Essa falta de vinculação do ordenamento jurídico é o pressuposto para ... do intérprete.

- A norma jurídica é o esquema de interpretação da realidade, é uma descrição hipotética de uma situação possível.

      Significa dizer que essa descrição hipotética possui certos caracteres. Primeiro a abstratividade e a generalidade. A generalidade seria a própria indefinição, daqui retira a margem de liberdade necessária para o aplicador aplicar ao caso concreto.

      O fato jurídico é toda situação fática que recebe seu significado por uma norma.

      Essa é a grande questão, qual o papel do intérprete? juntar esses dois elementos [norma e fato].

      A regra é: você tem a norma que seria o conteúdo determinado, nós temos o processo de aplicação e interpretação e consequentemente você tem a irradiação dos efeitos no fato jurídico. Então aquele que aplica vai unir esses dois pressupostos, norma e fato. Interpretar a norma e aplicar ao fato. E só pode interpretar a norma na situação concreta. Não existe interpretação abstrata, tem que relacionar ao caso concreto, para saber o sentido da norma. Só se pode interpretar a partir do momento que tenha como unir o fato à norma.

      A jurisdição constitucional de Hans Kelsen vai trabalhar com conflitos abstratos. E essa interpretação retira qualquer conteúdo fático. Seria algo técnico e jurídico, sem a questão da discricionariedade em o magistrado analisar a situação concreta.

      Ao final do capítulo Hans Kelsen vai fazer a categorização das indeterminações em pluralidade de significações de uma palavra ou sequência de palavras; discrepância entre a vontade das partes e a expressão da lei, que pode ser completa ou parcial; e por fim, a contradição entre duas normas.

      É importante categorizar porque o trabalho do hermenêutica é tanto com  a norma quanto com o fato. Ele coloca que os equívocos literais, como a primeira interpretação, decorre da própria linguagem, é o que nós chamamos de termos plurissignificativos. Significa que o intérprete quando for aplicar a norma vai necessitar determinar um sentido entre os disponíveis.

      Temos uma indeterminação decorrente entre os equívocos do legislador  frente as partes. Ele tem uma determinada norma, determina um destinatário  e coloca objetivos, mas em virtude de situações que extrapolam o destinatário e o objetivo da norma é que ocorrem esses equívocos.

     A indeterminação ainda pode ser por contradição entre duas normas. "A indeterminação do ato jurídico a pôr pode finalmente ser também a conseqüência do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente - porque, v. g., estão contidas numa e mesma lei -, contradizerem total ou parcialmente" (KELSEN, 1999, pág. 247).

      Hans Kelsen considera que se não existisse uma moldura normativa, nenhuma técnica hermenêutica limitaria o intérprete.

A tarefa do hermeuta

      A tarefa do hermenêuta é produzir o melhor método de interpretação que objetive o conteúdo da lei moldura. O conteúdo jurídico da interpretação vai ser arbitrado em última instância. Arbitrar um dentre tantos conteúdos, afinal toda decisão jurídica é em parte arbitrária, desde que seja dentro da moldura normativa.

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RECORTE: Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, Capítulo VIII

VIII - A interpretação
1. A essência da interpretação. Interpretação autêntica e não autêntica

     Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Quando se fala em interpretação da lei, deve-se saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto. Mas há também uma interpretação da Constituição, na medida em que de igual modo se trata de aplicar esta a um escalão inferior; e uma interpretação dos tratados internacionais ou das normas do Direito internacional geral consuetudinário, quando estas e aqueles tem de ser aplicados num caso concreto. E há uma interpretação de normas individuais... em suma, de todas as normas jurídicas, na medida em que hajam de ser aplicadas.

     (...) Mas também os indivíduos tem de observar o Direito, precisam compreender e de determinar o sentido das normas jurídicas que por eles devem ser observadas. E também, a ciência jurídica, quando descreve um Direito positivo, tem de interpretar as suas normas.

     Desta forma, existem duas espécies de interpretação que devem ser distinguidas claramente uma da outra: a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica [autêntica], e a interpretação do Direito que não é realizada por um órgão jurídico mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica [inautêntica].

a) Relativa indeterminação do ato de aplicação do Direito

     A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do escalão superior regula o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior; ela determina o processo em que a norma inferior é posta e o eventual conteúdo da norma a estabelecer.

     A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada.  Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato.  Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.

b) Indeterminação intencional do ato de aplicação do Direito
    
     Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. A indeterminação pode respeitar tanto ao fato (pressuposto) condicionante como à consequência condicionada, e pode mesmo estar na intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar.

     Assim, o estabelecimento ou fixação de uma norma simplesmente geral opera-se sempre sob o pressuposto de que a norma individual que resulta da sua aplicação continua o processo de determinação que constitui, afinal, o sentido da seriação escalonada ou gradual das normas jurídicas.

c) Indeterminação não-intencional do ato de aplicação do Direito

      Aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequência de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis.

     Que a chamada vontade do legislador ou a intenção das partes que estipulam um negócio jurídico possam não corresponder às palavras que são expressas na lei ou no negócio jurídico, é uma possibilidade reconhecida, de modo inteiramente geral, pela jurisprudência tradicional. A discrepância entre vontade e expressão pode ser completa, mas também pode ser apenas parcial.

      Segundo Kelsen, a indeterminação do ato jurídico a pôr pode finalmente ser também a conseqüência do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente - porque, v. g., estão contidas numa e mesma lei -, contradizerem total ou parcialmente. (1999, pág. 247)


d) O Direito a aplicar como uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação
    
     Em todos estes casos de indeterminação, intencional ou não, do escalão inferior, oferecem-se várias possibilidades à aplicação jurídica. O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses ( de indeterminação), uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.

    Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.

e) Os chamados métodos de interpretação

     Só que, de um ponto de vista orientado para o Direito positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à outra.

     Todos os métodos de interpretação até ao presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. Fixar-se na vontade presumida do legislador desprezando o teor verbal ou observar estritamente o teor verbal sem se importar com a vontade – quase sempre problemática - do legislador tem - do ponto de vista do Direito positivo - valor absolutamente igual. Se é o caso de duas normas da mesma lei se contradizerem, então as possibilidades lógicas de aplicação jurídica já referidas encontram-se, do ponto de vista do Direito positivo, sobre um e o mesmo plano. É um esforço inútil querer fundamentar “juridicamente” uma, com exclusão da outra.

      Com efeito, a necessidade de uma interpretação resulta justamente do fato de a norma aplicar ou o sistema das normas deixarem várias possibilidades em aberto, ou seja, não conterem ainda qualquer decisão sobre a questão de saber qual dos interesses em jogo é o de maior valor, mas deixarem antes esta decisão, a determinação da posição relativa dos interesses, a um ato de produção normativa que ainda vai ser posto - à sentença judicial, por exemplo.


 2. A interpretação como ato de conhecimento ou como ato de vontade

     A idéia, subjacente à teoria tradicional da interpretação, de que a determinação do ato jurídico a pôr poderia ser obtida através de qualquer espécie de conhecimento do Direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma interpretação.

     A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas.

     Mas também este último [juiz]  é um criador de Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre. Justamente por isso, a obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma função voluntária.

     Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc.

     Se queremos caracterizar a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva.

     A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de interpretação autêntica quando esta interpretação assuma a forma de uma lei ou de um tratado de Direito internacional e tem caráter geral, produção de uma norma geral (...) e ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma sanção.

     A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa. 

3. A interpretação da ciência jurídica
    
     Sobretudo, porém, tem de distinguir-se rigorosamente a interpretação do Direito feita pela ciência jurídica, como não autêntica, da interpretação realizada pelos órgãos jurídicos.

     A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Ela não é criação jurídica. É incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito, pois esta função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente.

     A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Deixa as decisões ao órgão aplicador dentre as possibilidades reveladas pela ciência jurídica. Um advogado que, no interesse do seu constituinte, propõe ao tribunal apenas uma das várias interpretações possíveis da norma jurídica a aplicar a certo caso não realizam uma função jurídico-científica mas uma função jurídico-política. Eles procuram exercer influência sobre a criação do Direito. Isto não lhes pode, evidentemente, ser proibido. Mas não o podem fazer em nome da ciência jurídica, como frequentemente fazem.

     A interpretação jurídico-científica tem de evitar a ficção de que uma norma jurídica apenas permite uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica.

    (...) nenhuma vantagem política pode justificar que se faça uso desta ficção numa exposição científica do Direito positivo, proclamando como única correta, de um ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de vista político subjetivo, é mais desejável do que uma outra, igualmente possível do ponto de vista lógico.

     (...) E que uma tal interpretação científica pode mostrar à autoridade legisladora quão longe está a sua obra de satisfazer à exigência técnico-jurídica de uma formulação de normas jurídicas o mais possível inequívocas ou, pelo menos, de uma formulação feita por maneira tal que a inevitável pluralidade de significações seja reduzida a um mínimo e, assim, se obtenha o maior grau possível de segurança jurídica. 
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  • Referência
- ALENCAR, Ronaldo. Hermenêutica Constitucional parte 1, apostila
- KELSEN, Hans, 1881-1973. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6a ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998. – (Ensino Superior)
- Aula 07/11/2013, Hermenêutica Jurídica, Profº Ronaldo Alencar

Bons estudos!

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